terça-feira, janeiro 08, 2008

MÓNICA SANTOS no JOGO

Prof. Vitor Frade



O Renascimento no futebol



Do centro de treinos do Manchester United saiu, recentemente, um comentário sobre o que de "muito interessante" se está a fazer na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Quando o treinador de um dos maiores clubes do Mundo assim fala, é impossível resistir a tentar perceber o que de tão extraordinário percorre a Europa até ao topo do futebol, onde mora Carlos Queiroz. O que se descobre é uma discussão filosófica arrebatadora que está a mexer com o futebol, ao dar-lhe uma dimensão cerebral até agora ignorada, com resultados fantásticos, ao nível prático: José Mourinho é a prova de que a Periodização Táctica não se limita a apaixonar. Dá vitórias. Saiu da mente de Vítor Frade, homem do futebol da relva e da universidade, os meios onde, ao longe de mais de 30 anos, construiu o conceito e deu corpo aos exercícios que o sustentam. Aquilo de que falava Queiroz.
As instalações são excelentes, e pouco mais do que isso é preciso para explicar o bom ambiente que se respira nos corredores e nos relvados da Faculdade de Desporto, para os lados de Paranhos, no pólo universitário, vizinha alegre de duas grandes unidades hospitalares, o São João e o IPO (Instituto Português de Oncologia). Vítor Frade passa ali metade dos dias. A outra vive-os no Olival, no centro de treinos do FC Porto, cuja formação coordena. É fácil encontrá-lo no bar da faculdade, a conversar com alunos ou a preparar, numa caligrafia agitada, notas para as aulas de Metodologia da variante de Desporto de Rendimento, cujos apontamentos incluem fontes tão diversas como jornais desportivos ou revistas de neurociência e filosofia. Mais difícil é convencê-lo a explicar a Periodização Táctica. E não é só O JOGO que esbarra nesta atitude. Universidades de toda a Europa têm recebido idêntica resposta, o encaminhamento para aqueles que partilham as ideias de Frade. O futuro da discussão será deles, e não falta por onde escolher.
A Periodização Táctica inspirou, no auge das conquistas de Mourinho no FC Porto, uma onda de teorização apaixonada, vertida em livros que faziam a defesa inflamada desta nova forma de encarar e trabalhar o futebol, por oposição aos métodos clássicos - e aos treinadores que os utilizavam. Hoje, a discussão continua acesa, violenta, mas circunscrita ao meio académico: os principais opositores da teoria de Frade convivem com ele no Gabinete de Futebol da faculdade; aprenderam dele o caminho tradicional, que o mestre pôs em causa; o confronto é feroz, mas faz parte do jogo - é também à força da discussão que as ideias avançam. Nos clubes, os jovens técnicos formados na Faculdade de Desporto são confrontados com a dura realidade que Frade conheceu nas décadas de trabalho de campo: inovar é um exercício de paciência, quando se tem a vitória como meta obrigatória, semana após semana, mas, se o Professor resistiu 30 anos (a idade da Faculdade), grande parte destes discípulos também resistirá. Quanto mais não seja, porque os há como Mourinho, que vencem. É isto que Queiroz - que, com Jesualdo Ferreira, concebeu no meio académico o modelo de formação que, no início da década de 90, fez de Portugal um vencedor ao nível das selecções jovens - segue com interesse, a partir de Inglaterra. A distância é boa conselheira para se perceber o fenómeno da Periodização Táctica: dilui questões pessoais e deixa apenas a teoria pura, fascinante, do futebol trabalhado no cérebro, que explora a plenitude da capacidade humana, ainda em descoberta pelos cientistas. Como se, sete séculos depois, o Renascimento tivesse chegado ao futebol.






O protagonista
Mestre discreto
A Faculdade de Desporto da Universidade do Porto é de pronúncia mais fácil no estrangeiro, talvez por se evitar a aliteração. Um nome é mais mencionado do que os outros - Vítor Frade, à esquerda na foto -, mas o verdadeiro protagonista destas páginas, embora cem por cento disponível para colaborar, prefere manter-se à margem.




A história de Xavier
O que se discute, afinal, quando se fala da Periodização Táctica? Teoria e prática desta metodologia de treino foram exploradas apaixonadamente por vários autores, inspiram teses de mestrado e contestação a treinadores no activo. Recentemente, um jovem espanhol dedicou-se ao exercício de explicar a resposta à curiosidade geral: "O que é a Periodização Táctica?" Xavier Tamarit Gimeno tem 25 anos e é hoje treinador na formação do Valência, onde procura implantar as ideias que traduziu em pouco mais de 120 páginas de um livro despretensioso e de leitura fácil - coisa rara na literatura especializada - lançado em Espanha, em Novembro.
Os genes terão ajudado: é bisneto de escritor e filho de jornalista, o que poderá concorrer para a facilidade da leitura, a que se junta uma sobriedade que raramente se encontra, na discussão deste tema. Xavier não se cansa a adjectivar negativamente os métodos clássicos. Tudo o que quis foi contar como nove meses no Porto, no âmbito do programa Erasmus, que promove o intercâmbio ao nível do ensino superior, lhe mudaram a vida.
O impacto é narrado na primeira pessoa. O futebol ocupou-lhe dois semestres. "O primeiro com o Professor António Natal, nesse momento preparador-físico do Boavista. O segundo com o Professor Vítor Frade, desconhecido para nós, até então. No primeiro semestre, os meus apontamentos foram invadidos por números, gráficos, quantidades, etc. Era uma visão completamente baseada na Fisiologia. Uma visão quantificadora do futebol. Número de quilómetros percorridos, quantidades de lactato, gráficos de todo o tipo… Em resumo, o que se vê em todas as aulas de Futebol das faculdades. O Professor Natal é um grande seguidor do trabalho fragmentado, do trabalho analítico, do trabalho físico, e conseguiu grandes resultados com a sua maneira de treinar. Até esse momento, o que estava a ver era normal para mim, o que se devia estudar para ser um bom 'preparador-físico' (pessoa que se encarrega de preparar fisicamente a equipa). Até que deixei de querer ser 'preparador-físico' (pois deixei de entender o futebol como algo fragmentável). Deixei de acreditar em testes físicos, em circuitos de força, em trabalhos aeróbicos e anaeróbicos, em analíticas, em trabalhos 'integrados' em que o importante é a melhoria física, em trabalhos de musculação. Em definitivo, deixei de acreditar no tipo de treino que impera nesta modalidade. Isto aconteceu a partir de Janeiro, quando comecei o segundo semestre, com o Professor Vítor Frade. (…) Ao princípio, nas suas aulas, não entendia muito bem do que nos falava. Eram muito filosóficas, muito abstractas, além de ser um outro idioma. Falava de Neurociência (…) e exemplificava sempre com Mourinho (cujo treino se baseia na Periodização Táctica)".
Quando voltou a Espanha, impregnado de ideias novas, Xavier passou da teoria à prática como preparador-físico de uma equipa amadora que se fez notícia ao acumular três quartos de campeonato sem derrotas. A curiosidade dos jornalistas, que viam a equipa muito bem fisicamente, era recebida como uma anedota pelos jogadores, que nunca tinham feito uma corrida. A curiosidade atraiu também o Valência, que recrutou Xavier para as camadas jovens. Hoje, coordena as equipas de 12, 13 e 14 anos, é adjunto desta última e técnico de uma modalidade específica, denominada "tecnificación", que visa a "melhoria da técnica individual". Grato pela mentalidade "aberta" que lhe abriu as portas do Valência, Xavier percebe melhor do que nunca como é "difícil" mudar métodos de trabalho "enraizados". Sobretudo, quando se tem apenas 25 anos e uma cara de rapazinho. Já terminou o curso, mas sente-se em permanente "avaliação", o que só fortalece a convicção com que defende a Periodização Táctica e que o levou a escrever o livro, que abre com uma dedicatória a Vítor Frade, "por criar e mostrar outro horizonte, por ter aguentado anos de críticas, como todo o génio que ultrapassa o Pensamento do momento. Porque, apesar da sua humildade (dando todo o mérito àqueles que levam a sua metodologia da teoria à prática), o mérito é dele, pois, tal como os reis magos, ninguém teria encontrado o caminho sem uma estrela fugaz que o ilumine".




O futebol sonhado na ponta do pé
A Periodização Táctica rompe com os métodos de treino tradicionais por se concentrar menos nos músculos e mais no cérebro, com melhores resultados. Décadas de trabalho de campo como preparador-físico de equipas do primeiro escalão levaram Vítor Frade a pôr em causa os métodos que aprendera e ensinara. O futebol podia ser mais do que aquilo que era ensaiado. Podia ser melhor, mais aliciante e menos violento para os jogadores. A par do treino dos músculos, havia que treinar o cérebro, onde tudo acontece. As descobertas de António Damásio, em meados da década de 90, deram a conhecer uma nova dimensão do ser humano - a que Descartes negara, no século XVII -, ao mostrar que as emoções fazem parte da tomada de decisões que se processa no cérebro. O filósofo remetera os sentimentos para uma glândula escondida e desconhecida, onde se acumulariam, ficando a razão a salvo de qualquer contágio e o ser humano. As experiências de Damásio mostraram que todas as vivências ficam registadas no nosso cérebro, como numa base de dados que consulta antes de tomar qualquer decisão - tudo isto antes de termos consciência do que quer que seja; quando decidimos fazer algo tão simples como carregar num botão, o processo que leva a esse movimento já foi desencadeado ao nível cerebral, mas dispomos de alguns micro-segundos para cancelar a instrução, que partiu de uma parte de nós cujo funcionamento permanece por explicar.
A doutrina de Vítor Frade defende que o jogo seja preparado levando em conta esta dimensão ainda em descoberta. Ou seja, em vez de se concentrar na repetição de exercícios até conseguir a mecanização do jogo, preparando arduamente uma equipa para enfrentar picos de forma durante a temporada, a prioridade do treinador será passar aos jogadores o modelo de jogo que pretende e será a partir dessa consciência que todos os detalhes, individuais e colectivos, serão trabalhados. Todos os que se puder imaginar e mais ainda - sem necessidade de sobrecarga do ponto de vista físico, porque, quanto mais situações de jogo o cérebro tiver registadas menos esforço será necessário para as pôr em prática.
Basta recordar o FC Porto de Mourinho - que nunca foi aluno de Frade, mas tem como adjunto um dos mais brilhantes alunos, Rui Faria -; em campo, era isto mesmo: toda a gente sabia onde tinha de estar, o que fazer e como reagiriam os companheiros perante determinada opção face a uma situação de jogo. Mourinho mostrou que Frade não defende apenas uma teoria romântica - a da plena realização do atleta pela contínua superação -, mas uma nova prática, mais exigente e aliciante para treinadores e jogadores. Por isso há textos de apoio sobre filosofia e neurociência, na cadeira ministrada por Vítor Frade. E textos de Valdano, que soam a um futebol tão harmonioso que chega a parecer sonhado, mas que é real, possível. Mesmo sem o brilhantismo de Mourinho, há quem tente pôr em prática a Periodização Táctica. O resultado é, no mínimo, um futebol interessante, e uma inquietude permanente nesses treinadores, sempre à procura de melhor. Do futebol que têm gravado no cérebro.
Frade defende que, em vez de se concentrar na repetição de exercícios até conseguir a mecanização do jogo, o treinador deve ter como prioridade passar aos jogadores o modelo que pretende. É a partir dessa consciência que todos os detalhes, individuais e colectivos, são trabalhados




No limite mora a criatividade
Uma boa razão para desprezar a Periodização Táctica é o trabalho que dá. Nem tanto nos exercícios - pormenorizadamente apresentados nas obras da especialidade -, mas, sobretudo, na exigência que implica para técnicos e jogadores. Aos primeiros compete definir um modelo de jogo, transmiti-lo ao plantel e, depois, trabalhar cada atleta de modo a que o desempenho em campo funcione para o objectivo comum, através do máximo enriquecimento da memória de situações de jogo. Ou seja, para que o futebolista esteja mais bem preparado para enfrentar o imprevisível de cada partida, que há-de levá-lo a recuperar a informação armazenada e, em consequência, a executar determinado movimento - sem pôr em risco a harmonia da equipa, que também estará treinada para antecipar a resposta do companheiro - ou, no limite, a improvisar uma nova resposta, que há-de acrescentar a memória do cérebro e, se possível, desconcertar o adversário. Tudo dentro de um princípio de equilíbrio do jogo colectivo que pode representar um risco para o desenvolvimento dos atletas.
Outro desafio que se coloca aos treinadores é precisamente o de garantir que este esforço para harmonizar o raciocínio e os movimentos da equipa não resulta numa excessiva aprendizagem induzida - um risco que o futebol enfrenta com o desaparecimento do futebol de rua, a melhor escola da modalidade, onde o improviso é continuamente estimulado; Ronaldinho conta que treinou todas as fintas com o cão, por vezes o único companheiro do jogo, a quem só não podiam fazer o túnel, porque tinha patas curtas. Não é por acaso que os craques nascem em meios pobres. Em Portugal, e apesar da pobreza, cada vez se brinca menos na rua. As cidades não deixam e à agenda dos pais é mais conveniente remeter os putos para uma escola de futebol onde ficam à responsabilidade de terceiros do que deixá-los livres para descobrirem o jogo. É dessas memórias que o cérebro guarda dos músculos que nascem as estrelas. Até hoje, ainda ninguém conseguiu concebê-las em laboratório. No Valência, Xavier Gimeno Tamarit procura superar essa lacuna com treinos de técnica individual. Aulas de liberdade para jogar à bola.




Mourinho no feminino
Xavier Gimeno Tamarit esteve, recentemente, no Porto. É uma viagem frequente, para "refrescar ideias" junto do mestre Frade e actualizar conhecimento, entusiasmado. Entre outros, assistiu a um jogo da equipa de infantis do FC Porto, de visita ao Ramaldense (2-1). No banco de suplentes construído, em cimento, num dos extremos de um campo velhinho, pelado, em risco de ser devorado pelo apetite imobiliário naquela zona da cidade, está Marisa Gomes, a treinadora. Quem a vê, só se espantará por ser mulher. Quem lhe conhece o percurso académico e a clareza de ideias vê nela… Mourinho. Os relatórios dos jogos fazem parte dos apontamentos da Faculdade de Desporto. Estão lá todos os atributos de José Mourinho: a capacidade de decisão, a coragem de assumir as opções, a autocrítica, a clareza a explicar o jogo, um profundo conhecimento de cada atleta. Xavier cita-a com frequência no livro, tal como a outros ex-alunos da Faculdade de Desporto do Porto. Talvez nenhum seja tão completo como Marisa, mas talvez nenhum tenha um caminho tão difícil a percorrer. Ainda assim, o FC Porto confia-lhe os vencedores do futuro. Apesar de tudo, estar nessa equipa é um bom começo.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Efectivamente o Professor Vítor Frade é uma pérola do conhecimento no que respeita ao treino no futebol... o Porto tem muita sorte em te-lo e deve aproveita-lo tanto quanto possivel pois aquela cabeça vai dar que falar mesmo daqui a 500 anos... é o Da Vinci do treino este Prof.!!

12:39 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Grande site.
Grande artigo.

Fico muito por ver que o nosso FCP no caminho certo.

1 abracco

5:55 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Parabens prof. Vitor Frade, um Homem com tanta sabedoria e muitissimo discreto.

6:23 da tarde  

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